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22.2.07

"A Fila"_ Conto breve(500 palavras)INÉDITO_Para coluna "COTIDIANO"-Revista "Showroom"_MAR/07



“A Fila”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Não lhe causou estranhamento algum quando, já na entrada daquele pátio, topou de cara com a tabuleta bem postada, solene, onde se lia: “A FILA”. Em caixa alta, sem serifas, preto sobre o branco e bem à altura da vista. A lucidez com que se impunha excluía e conclamava a presença de uma crase. Isso sim, seria de se estranhar? Ao contrário, era quase uma condição, uma essência mesmo da placa, essa simultaneidade. A caminho, no entanto, lembrou-se ter lido “FUNERÁRIA” onde seria mais crível que, pelo recorte urbano do local, pela vizinhança típica, lá estivesse escrito “FUNILARIA”. Mas este petisco caprichoso, já o reservara ao analista, até por uma questão de comodidade, ou de resistência. Não era o caso desta placa. O máximo que ela permitia era conjecturar se teria faltado um ponto de exclamação ou, algo mais sutil – se, por decoro de se evitar um imperativo grosseiro, autoritário, suprimiram elegantemente um “RESPEITE A FILA!”. E era essa condição que impunha respeito.
Tudo isso lhe infundia uma espécie de esperança vaga, de crença em valores substantivos, de confiança pela confiança; acelerou a marcha e perfilou-se aos demais. Não eram muitos, os demais. Silhuetas discretas, deslocamento proporcional aos espaços sucessivamente desocupados pelo atendimento. Pessoas, como ele, ali, na fila. Dispunha de um dispositivo contra o enfado, conversa mole, mas, sobretudo, contra a timidez incorrigível. Era um livrinho em formato seis por cinco que cabia em qualquer canto de bolso, paginação confortável e à prova de olhares bisbilhoteiros. “Padre Antônio Vieira”, uma antologia...viria a calhar; apalpou e, pela espessura percebeu o engano; era um Hamlet cuja impressão, de tão nítida, dava para ler até nos vagões do metrô e, até por isso, ele o reservara para o crepúsculo.
Decepcionado, enfiou as mãos pelo bolso e resignou-se a sua corporeidade perfilada aos demais. Foi então que se instalou um certo caos no recato daquela espera ordenada. Um homem deixou a fila e, ajeitando pasta e capacete pelos braços aproximou-se, agachou-se e ergueu do chão um retângulo de plástico cinza.- “Esta senha é sua, não?” Sim, era dele, escapou do bolso onde guardava o William Shakespeare das horas crepusculares. – “Melhor ficar esperto pra quando a fila bifurcar”, asseverou, num tom de voz sinistro, em baixo profundo e olhando furtivamente para os lados e para cima, em direção ao começo da fila. – “Obrigado, mas que bifurcação é essa?” Olhou para o edifício à frente, era térreo, não havia razão para olhar para cima.
O caos se instalou por uma razão singela e contra cuja obviedade, a menor inobservância parecia implicar em afronta grave. Tinha alguma relação com as senhas e aceitar que a cor da senha determinasse a bifurcação parecia tão consensual aos demais, que apenas uma leve indagação sobre sua razão de ser, soava como um libelo. E tornava o perfilado um contraventor.
- “A minha, senhor, eu sei que é branca. Quando bifurcar lá na frente eu sei pra onde devo me dirigir. E a sua que eu vi que é cinza vai tomar outro destino. Fica mais atento que ninguém aqui é ingênuo nem palhaço!”.
- “Bom, já que” branco “não é cor, deve ter senha preta também...”.
- “Tem sim senhor, mas ninguém viu cair de bolso nenhum!”.
- “Deve ser porque não tem destino nenhum!”

5.2.07

"Aquele cuja fome espera"_





Aquele cuja fome espera
A fome que estará saciada
No outro, enquanto este, quimera,
Padece de fome engaiolada...

E, se o que sacia a fome está, sempre
Apenas onde nós a pomos,
Pra que enraizar felina fome
Entre patas caninas e alpiste sem nome!?

E se, então, surgir a liberdade
Que desmoronasse a espera em cadeia
E desencadeasse uma fome dual ?!

Libertos estariam, um para o outro,
E, ambos, para a saciedade
Ou para uma liberdade de esfomear-se da falta...

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

O cartoom de Miram serviu de mote à tarefa de compor uma peça literária em 20', testemunhado por cerca de 30 integrantes da Oficina Literária de Nelson de Oliveira. A escolha do gênero era livre.Um ano depois, desconhecidas tais circunstâncias de produção, o soneto de margem a um gama de interpretações e adjetivações diferentes. Seu hermetismo, em boa parte, deveu-se a essas condições. A polissemia, a resistência ao tempo e a abertura incitada no leitor - eis o que me motiva a postá-lo (o cartoom). Ah, as "hermenêuticas"...