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30.6.10

'ARQUIVO TRUNCADO' {Posimetrum sci-fi inédito ao PORTAL 2001-Livro V do Projeto Portal





“ARQUIVO TRUNCADO”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

I

Perdi a conta da minha idade-Terra; um tempo cuja dimensão objetiva deslizou pelos meus dedos-prótese. Para efeitos censitários, a propósito, nunca souberam onde me encaixar, em que categoria neo-etária, funcional (‘pesquisador arqueólogo’, cogitavam; mas – o quê exatamente faz?) ou econômica. Um emblema dessa minha resistência é cultivar abertamente um vocabulário extemporâneo, nada funcional neste pós-reforma que substituiu a retórica pela criptografia globalizada Minhas experiências com linguagem não utilitária andam expondo-me a riscos. E em meus sonhos da noite voltam estes com meu deslizar sobre paralelepípedos.
O divisor de águas, uma de minhas diletas expressões, foi a digitalização que fizeram de minha tese “Nidra”, a partir dos arquivos que restaram do departamento de línguas mortas, num desses feudos institucionais que sobreviveram à fúria devastadora das novíssimas normativizações. Sânscrito? Davam de ombros e me davam sossego para trabalhar com certa autonomia, seja porque não gozava de reputação alguma, ou demandava verbas, subsídios, muito menos - visibilidade. E se esta condição punha-me a salvo dos eflúvios de vaidade intelectual (palavra banida desde 2073), não me protegia de toda discriminação social embutida em minha ‘triste figura’. Um invisível deslizante.

II

Por ladeira de paralelepípedos escoa o fluxo dessa aventura. Mas, vocábulo infenso, refratário à fluência poética, exige um freio igualmente duro, como um ‘que’. Então - e deitando meu peito sem camisa numa esteira imaginária de rolimã, deslizo pela rua calçada de paralelepípedos que, ensaboados pelo sol a pino liquefazem minha vertiginosa onipotência onírica.
A mil e duzentos metros de altitude a roxa é macia como travesseiros-da-nasa. Com o peito quase resvalando o calçamento, nas baixuras, não é diferente a coisa táctil, amaciada pelo sonho induzido. Mesclando um pós-sonho com o caminho-das-pedras, narrativo, eis o que faço – colher, com uma tarrafa remendada todo o nado dos peixes de um sonho, sonho da noite. Recorro, descaradamente, aos textos literários de toda uma civilização proscrita da nova ordem. Se, pelo conto de Borges, me é dado acordar para escapar da morte, também me soa imperativo não truncar o fluxo, subterrâneo ou panorâmico, em nome do cumprimento de um devir metabólico - o de não despertar. O sonho foi um acordo, sempre o é; devo honrá-lo; gosto se me saber sonhado. O Sonho é um paralelo epíteto, somado a um que de não sei o quê.

III

Não me cadastrei no programa de ‘recall’ genético nem sou beneficiário do SAT – o sistema, de inspiração totalitária (outro vocábulo banido), que prescreve atenção terciária aos genomas de meus concidadãos. Até porque, mesmo estes, desconhecem o que seja cidadania e o máximo que sabem sobre compartilhar, concerne à passividade com que se iludem com expropriações em seus corpos e almas. Sou uma alma penada em corpo rebelde e, repito – estou correndo riscos. Em minha mais recente excursão à Área Sete, tive meus dois caixilhos confiscados mais os auriculares desabilitados, pelo trauma resultante de uma ação miliciana, truculenta e à luz das três horas do terceiro período, outrora chamado ‘madrugada’. Tratava de acertar a publicação, por demanda, do texto que narra minha aventura com superfícies de paralelepípedos. Meus contratantes desapareceram, física e judicialmente. Trago brotoejas na nuca (indícios de implante remoto de sensores de movimento) e me sinto seguido em cada quadrante, apesar de minhas credenciais antiquadas. Ah, sim – faço conjecturas sobre minha idade sim, porque mantive os marcadores de referência temporal que colhi por inferência. Sou um humano de idade avançada; avancei o quadrante da pós-humanidade.Repito – es...
{Dedicado ao amigo escritor e colega-colunista do blogue De Chaleira - Eutáquio Gomes}







14.6.10

“SEGUIMENTO DEZENOVE”

Por Marco A. de Araújo Bueno

I

Minutos antes de uma hora impossível da manhã, o homem renitente submerge d’algum vão de escadaria do metrô em qualquer plataforma que rasga dos mais de seiscentos quilômetros da malha de Nova York.
Fosse de Tókio, de Londres, ele viria surgindo igualmente íngreme; de Moscou – duzentos e cinqüenta quilômetros – tê-lo-íamos visto desenfurnando também, a distar meio metro dos demais transeuntes, outros seres; seus concidadãos...
Onde quer que haja boa malha no que foram grandes cidades, e não tenham, ainda, se engolido a si próprias nessas dobraduras subterrâneas, ele, o homem renitente, terá brotado de novo aí para desaparecer-se outra vez mais adiante e sempre.
Sempre cravando sua pontualidade geométrica, sincopada, desaflita – sôfrega de tanta uniformidade constante – o que aflige e até embriaga observadores desatentos, ou, atentos em demasia. Eis o que veremos.
Veremos a indumentária passando em rasgo, aquela do homem-uniforme qualquer, de qualquer ciclo e quadrante, e deixando resíduos de naturalidade corriqueira porque sempre e sempre muito reconhecível pela funcionalidade discreta, infatigável.
Nunca o veremos aportando de vez, chegando a qualquer parte a guardar as cascas do trajeto em compartimento numerado, com partículas de véspera por dentro; nenhum conforto o aguarda nunca - essa é a impressão que fica.
Desta vez, o vemos rasgar da plataforma portando um retângulo grosseiro (nada parecido com um caixilho) semi-envolto em pasta padrão antiga, com um display aberrante e embaçado de chuva ácida. Parece ter catarata nos calçados, nesse estar indo.

II

Neste seguimento, porém, de muitas perspectivas alguns observadores aleatórios o contemplam, para diferentes finalidades de estudo. Nesse registro o recortamos e assim expomos alguma perplexidade. Os diálogos foram vertidos para Unilíngua, o que, se apaga alguns marcadores significativos, amplia as possibilidades de se estabelecer um padrão. O trânsito das observações está desabilitado. Nada será reportado em tempo real à instância reguladora do experimento. Da massa documental, far-se-á uma matriz a instruir os passos seguintes:

S/19-1:

- Lá vem o homem...
- Tão insignificante... E nós aqui só existimos por causa dele!
- Por quê? Com que ele opera, afinal?
- Com as condições da nossa existência, ora; e por contraste. Nossa visibilidade como pós-humanos depende dele, como pano de fundo.
- Isso é desconcertante, abusivo...
- É que nos revela as nossas virtualidades transgressivas. É um paradoxo – podemos explodir coisas, abstratas, até. Mas, se ele desaparecer por causa disso, sanções nos aguardam. E essas sim – desconcertantes.
- Ele é nossa bomba-relógio... Não o perca!




S/19-2:

- O homem está vindo de ou indo para?
- Eis a questão, o do que se trata; o móvel...
- Podemos ser mais pragmáticos?
- E o pragmatismo não está na ação, nesta que ele incorpora?
- Pois o homem com quem se depara, já não o vejo!
- Será que ele nos vê?
- Filosofia, poesia e nós aqui – parados!


S/19-3:

-Pois bem, a idéia é rastreá-lo e mapear o deslocamento dele.
-Descartada; não podemos tocar nele nem abordá-lo.
-Ficaremos nas conjecturas, então?
-Não. É um impasse metodológico...
-Poderíamos segui-lo à distância?
-Não temos tal competência.
-E perderíamos o olhar - estrangeiro...

S/19-4:

-Não entendo a lógica do Seguimento Dezenove...
-Cotejar diferentes perspectivas, ora; suponho - os observadores, a neutralidade, os duplo-cego e os modelos quânticos; os velhos parâmetros, não?
-E nada sobre os riscos? Os velhos riscos?
-Ora, um andarilho renitente, uniformizado e sem pertença; catatonia agitada; onde os riscos?
-Nessa aparente singeleza do fenômeno; em nossa ignorância adestrada...
-Lá vem o homem, observe, sem obscurantismos.
-Tenho maus pressentimentos...

S/19-5:

-Veja como ele não se dissolve no fluxo pela plataforma; segue tão pontiagudo.
- Pode atrair raios! Aquele retângulo tosco... Condutível?
- Acho improvável, mas tem qualquer coisa estranha nisso!
- Que autonomia teríamos para agir, em caso de desastre?
- Nenhuma. O que nos cabe é oferecer a nossa perspectiva do desastre.
- Então pondera a possibilidade de um desastre?
- Eu não pondero nada, apenas observo, ora.

S/19-6:




- Todo este aparato ótico, é só o que temos...
- Não nos cabe maiores intervenções. Um enigma, esse homem!
- E como mostraremos competência à instância reguladora?
- Cumprindo nosso contrato; somos instrumentos óticos e...
- E você deve baixar essa ansiedade. Esse ambulante é objeto para pesquisa pura e nós contamos pouco, é isso?
- É mais ou menos isso. Sejamos discretos e renitentes, como o nosso objeto de estudo.
- Acho meio conspiratória essa falta de ação...

S/7-7:

- Nada do homem neste quadrante...
- Nem sinal. O que estará acontecendo aos olhos dos outros?
- Talvez a mesm... Que porra é aquilo, explosão?!
- Vazamento radioativo na Área Sete! Abortar a tarefa!
- Alá, o homem renitente... Caminhando?!
- Em plena plataforma em alerta!
- E aquele caixilho tosco, onde foi parar?!