“ARQUIVO TRUNCADO”
Por Marco Antônio de Araújo Bueno
I
Perdi a conta da minha idade-Terra; um tempo cuja dimensão objetiva deslizou pelos meus dedos-prótese. Para efeitos censitários, a propósito, nunca souberam onde me encaixar, em que categoria neo-etária, funcional (‘pesquisador arqueólogo’, cogitavam; mas – o quê exatamente faz?) ou econômica. Um emblema dessa minha resistência é cultivar abertamente um vocabulário extemporâneo, nada funcional neste pós-reforma que substituiu a retórica pela criptografia globalizada Minhas experiências com linguagem não utilitária andam expondo-me a riscos. E em meus sonhos da noite voltam estes com meu deslizar sobre paralelepípedos.
O divisor de águas, uma de minhas diletas expressões, foi a digitalização que fizeram de minha tese “Nidra”, a partir dos arquivos que restaram do departamento de línguas mortas, num desses feudos institucionais que sobreviveram à fúria devastadora das novíssimas normativizações. Sânscrito? Davam de ombros e me davam sossego para trabalhar com certa autonomia, seja porque não gozava de reputação alguma, ou demandava verbas, subsídios, muito menos - visibilidade. E se esta condição punha-me a salvo dos eflúvios de vaidade intelectual (palavra banida desde 2073), não me protegia de toda discriminação social embutida em minha ‘triste figura’. Um invisível deslizante.
II
Por ladeira de paralelepípedos escoa o fluxo dessa aventura. Mas, vocábulo infenso, refratário à fluência poética, exige um freio igualmente duro, como um ‘que’. Então - e deitando meu peito sem camisa numa esteira imaginária de rolimã, deslizo pela rua calçada de paralelepípedos que, ensaboados pelo sol a pino liquefazem minha vertiginosa onipotência onírica.
A mil e duzentos metros de altitude a roxa é macia como travesseiros-da-nasa. Com o peito quase resvalando o calçamento, nas baixuras, não é diferente a coisa táctil, amaciada pelo sonho induzido. Mesclando um pós-sonho com o caminho-das-pedras, narrativo, eis o que faço – colher, com uma tarrafa remendada todo o nado dos peixes de um sonho, sonho da noite. Recorro, descaradamente, aos textos literários de toda uma civilização proscrita da nova ordem. Se, pelo conto de Borges, me é dado acordar para escapar da morte, também me soa imperativo não truncar o fluxo, subterrâneo ou panorâmico, em nome do cumprimento de um devir metabólico - o de não despertar. O sonho foi um acordo, sempre o é; devo honrá-lo; gosto se me saber sonhado. O Sonho é um paralelo epíteto, somado a um que de não sei o quê.
III
Não me cadastrei no programa de ‘recall’ genético nem sou beneficiário do SAT – o sistema, de inspiração totalitária (outro vocábulo banido), que prescreve atenção terciária aos genomas de meus concidadãos. Até porque, mesmo estes, desconhecem o que seja cidadania e o máximo que sabem sobre compartilhar, concerne à passividade com que se iludem com expropriações em seus corpos e almas. Sou uma alma penada em corpo rebelde e, repito – estou correndo riscos. Em minha mais recente excursão à Área Sete, tive meus dois caixilhos confiscados mais os auriculares desabilitados, pelo trauma resultante de uma ação miliciana, truculenta e à luz das três horas do terceiro período, outrora chamado ‘madrugada’. Tratava de acertar a publicação, por demanda, do texto que narra minha aventura com superfícies de paralelepípedos. Meus contratantes desapareceram, física e judicialmente. Trago brotoejas na nuca (indícios de implante remoto de sensores de movimento) e me sinto seguido em cada quadrante, apesar de minhas credenciais antiquadas. Ah, sim – faço conjecturas sobre minha idade sim, porque mantive os marcadores de referência temporal que colhi por inferência. Sou um humano de idade avançada; avancei o quadrante da pós-humanidade.Repito – es...
{Dedicado ao amigo escritor e colega-colunista do blogue De Chaleira - Eutáquio Gomes}