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24.12.06

Crônica para DEZ/06_Coluna "Cotidiano"_Revista "Showroom" (texto inédito)

“Butão & Lullismo”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Pensava no Butão, no Reino do Butão a sete mil metros de altitude, lá nos Himalaias do oriente, entre a China e a Índia, sem mar algum. Você pensou num montão de homofonias, é razoável. Inda mais assim, aproximado de um “ismo” tão recorrente presidindo correntes de idéias, associações de pensamentos e atitudes, essas coisas todas. Mas o “butão” aqui não é de se apertar como num controle remoto e implodir o eixo da Economia, tal como se imaginava com a “bomba”, nos tempos da guerra fria.
Mas vamos indo com calma, uma calma quase tibetana para lembrar que houve um mestre de capela, um compositor, nos tempos de Luis XIV e sua corte e as danças instrumentais de então, até porque, em nossa macroeconomia, não se dançou conforme a música, tenha sido qual for no tempo recente. O nome dele – Lully –, seus seguidores – “lullistas”. Eis o que torna razoável alguma confusão, esta que já vai parando por aqui. Mesmo tendo em conta que as danças que Lully “inventou” para a abertura de suas óperas, aí sim, eram tão populares como as cantigas de rua do século dezoito.
E daí? Daí que, durante toda a Idade Média e até mais adiante, já no período renascentista, as danças eram a única forma de música instrumental e os instrumentistas que acompanhavam os dançarinos eram “classificados” como músicos do povo, meio “desincluídos” da categoria de “grandes” músicos. Então, se era em inclusão que pensava (e, convenhamos, só pode haver inclusão se houver inclusão na Economia, com toda essa conversinha de “respeito às diferenças, etc.), então voltamos ao Butão e pronto.
No Reino do Dragão, como é chamado, instituiu-se, a exemplo do “IDH” (Índice de Desenvolvimento Humano) enquanto baliza da saúde econômica de um povo, pois lá se inventou o “Índice de Felicidade”. E nem por isso deixaram de incorporar a ele o carcomido “PIB” e outros indicadores econômicos. Soa como música, pois não?
Agora veja você, aliás, esqueça o “veja” – ouça você no que deu toda a movimentação fervorosa dos alunos e seguidores de Lully: deu nesse gênero a que se chama “suíte para orquestra”, o mais livre e mais aberto da música barroca; coisa sofisticada, difundida pelos franceses em toda a Europa até chegar à matemática musical de um J.S.Bach! À harmoniosa depuração da alegria dos sentidos e não há neurocientista honesto que o possa refutar.
Claro que as pessoas do século dezoito não dançavam ao som das suítes instrumentais, mas o gênero suíte para orquestra conservou a medieval função recreativa da música de dança e, curioso: de tão utilizada como música de fundo em suntuosos banquetes, passa a se chamar, na Alemanha, Tafelmusik que quer dizer, saberia você? Quer dizer exatamente “música de mesa”.
Mais do que há dez ou quinze anos atrás, se nos impõe agora uma pergunta; mais que isso, - um questionamento - aquele que se tornou, a nós, bem pertinente, e justo pela via musical: - “Você tem fome de que?”.
A propósito, a ceia no seio da sua família...Que ceia?
E isso de “inclusão”...Que seio?
E “que família?”, perguntaria. Não.
Não perguntaria
Que algo de Butão “seja aqui”, antes que aquele deserto enorme alcance a China. Se é que você acompanhou o raciocínio sobre o “lullismo” e não andou comendo algum “L” por distração...Ou pelo hábito, anti-lullista, de “ligar o botão do f...-se” para tudo que não lhe invada a soleira da porta ou lhe ameace de morrer de sede.

19.12.06

Compartilhando e agradecendo pelas leituras/2006

VENHAM DAR SUAS CONGRATULAÇÕES AO VENCEDOR!!!Esta semana, o poema ' ODISSEU', de autoria do poeta, Marco Antônio deAraújo Bueno foi escolhido como a 'Poesia Destaque da Semana' dacomunidade Natureza Poética.., para o período de 18 A 31.12.06.Terceiro poema a ser eleito para esse tópico exclusivo das poesias quevenham a se destacar nesse evento, pode ser lido também no tópico e noblog abaixo indicados.Prestigiem o poeta e apreciem o poema.No Orkut:http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=12643503225249532794No blog:http://gritosverticaisdanaturezapoetica.blogspot.comAss.:Os Moderadores.
--Marco A. de A. Bueno www.araujobueno.psc.br e wwwaraujobueno.blogspot.com(inéditos_referências)

15.12.06

"Odisseu" _ Mote: Clichê no cinema_Oficina 08-08-06

Odisseu
Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Ele estava imbuído de um estilo Chacal.
(Confeitos de cânhamo embebidos em mate);
Vestiu rigoroso traje anti-suspeição e o retocou.

Ganhou a rua, solene, dobrou a echarpe; café!
Acenou ao táxi que não parou, seguiu a pé.
Economia de atos, beirava o trivial, rito e rigor.

Transeuntes pelo museu, ele em transe, trivial
.Pés e mãos gelados em pleno local calafetado.

O cânhamo dilatou a escultura do Canhão.
Acenou:"Leve a peça até a moto, lado a lado, comigo, espeto-lhe!

"Na saída, desarmado da caneta Picasso que nada espetou,
Só via o Canhão reposto ao pilar, soar de sirene e camburão.

Em cana, em fim, apenas uma beatitude e cabeça oca.
Suspeitou: há xixi no traje todo; irretocável. E sorriu.
Depois chorou, exausto. Pediu um mate, alguém gargalhou.

Ilustração:personagem-narrador- ornitólogo- Conto:"Hora e Vez da Pardoca"

"Hora e Vez da Pardoca"_ilustração: personagem do Conto(publicação "protegida"/solicitação por e-mail pessoal: araujobuenopsi@gmail.com)_DEZ2006

14.12.06

Mini-crônica: "Sexta"_publicada ed.237/Ano 29_Revista SHOWROOM-www.assobrav.com.br

“Sexta”
Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Sexta-feira, manhã nublada, era um daqueles dias em que ela mal acordava e, antes mesmo do café solúvel, deixava-se dissolver pelas poucas páginas do jornal do bairro. Sem pressa, sem ânimo, sem prioridades; entre a letargia e um leve impulso masoquista. Pulava o editorial e as primeiras matérias pagas com fotos de gente familiar ao seu cotidiano. Deixaria pro fim os fragmentos naturalistas que lhe devolvessem algum senso de realidade. Pularia a leitura de seu próprio signo no horóscopo e a de seu próprio obituário se fosse o caso, baixa probabilidade, de que o jornal, desculpando-se alhures, fizesse menção à existência dela ao noticiar seu passamento. Baixa probabilidade, pois jornais de bairro não trazem obituários, tratam a morte pelo seu avesso. A programação cultural então, nem pensar. Ficaria aflita com a idéia de diversão compulsória para mais aquele “f.d.s.”. “Ótimo “f.d.s.”! Ou “Curta bem o seu “find”!, era o que lhes desejariam seus e-mails ao final do dia, referindo-se ao sábadoedomingo, inexorável.
Adorava começar e interromper a leitura de mini-matérias edificantes, novidadeiras de ruminações. Suspendia-lhes qualquer desfecho moralizante, rindo-se da idéia, segundo a qual, escrever é como falar sem ser interrompido. Pois não só interromperia como completaria a leitura com um outro assunto qualquer, buscado a esmo, de trás pra diante, de qualquer jeito. Importava manter a letargia plena de significados desconexos, abertos; e que a manhã se mantivesse nublada, sem chuviscos nem meio-sóis.
Se passava algum desconforto numa vista d’olhos pela coluna social, logo o aplacava, divertindo-se: isso sim é que seria probabilidade baixa! Mas, sabe-se lá, por um capricho de angulação imperfeita, em evento qualquer...e ela ali capturada fora de foco, em movimentação bizarra - um escotoma, ela! O ponto cego de um fotógrafo. Foi quando notou, em ângulo aberto, uma figura conhecida, ainda que anônima. Sentiu o reverso de um encantamento, uma familiaridade brutalizada, esvaziada de toda uma certa magia que, certa vez, a recobrira. A tal senhora que lhe parecia tão enigmática na ocasião em que proferiu uma sentença quase mística, oracular como no horóscopo: - “Cuidado para não perder a sua identidade!”.
Foi numa floricultura do bairro (entrara só por entrar) e, logo ao sair, perplexa com a suposta profundidade da sentença proferida pela cotidiana senhora, notou que a carteira de identidade lhe saltava quase um terço pra fora do bolso traseiro do jeans.
E como o incidental da coisa não lhe chegasse a provocar algum riso, da mesma forma não mais prazer conseguiria com aquela desleitura de jornal de bairro.

5.12.06

Tempoespaço/Eu narrativo_explorações

"Camafeu"Conto publicado e apresentado no Sarau das Oficinas de Produção Literária sob curadoria de J.Sivério Trevisan_Ofin.:Nelson de Oliveira

“ Camafeu”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Deixando o restaurante bandejão, lá vinha a Roxana equilibrando mochilinha nas costas, tonelada de xerox na mão esquerda e um saco plástico contendo uma baguete de pão murcho e uma laranja não descascada. Eu acompanhava a cena de um ponto do campus onde, aos trancos, sacolejando, desembestando pela turba, ela trombaria comigo, surpresa, mas agradecida: - “Ah, o cara, meu anjo da guarda, o carinha que deixou a Psico pra entrar pra História!”. Assim me enquadraram quando, alguns anos de formado, consultório claudicante, entrei para o curso de História querendo esquentar um projetinho de mestrado que me levaria a muitos, muitos pontos do campus. A gente conversava papos-cabeça enquanto eu lia seus troncos e membros. Ela achava meu olhar “algo penetrante...” essas conversas sobre Eros e Tânatos, e eu sentia alguma ternura melancólica pela sua libido-algo dispersa- ali distribuída entre os textos pesados para os dezenove da menina e o pão murcho, que pegava por pegar, do jeitinho mesmo como pegava meu membro e enlaçava meu tronco. E nada, nada sabíamos sobre a laranja e o que já significava àquela altura. Tratarei de descascá-la aqui, com um leve arrepio na espinha e muita dificuldade de recordar a fluência com que passeávamos por tantos labirintos simultâneos, com o fio de Ariadne que nos oferecia a nossa condição de “membros”. Proust acreditava que o passado residia nos objetos.
Que a laranja me faça as vezes da “Madeleine” no chá que trouxe toda a infância do escritor, em Combray. E eu os conduzirei pelas andanças de um outro objeto, por corpos, por lugares e por instâncias vertiginosas entre tânatos e o que tínhamos de Eros.
Ela e eu nos sentamos de frente um para o outro com as pernas abertas ao modo de sempre. Entre as dela, duas sedinhas, uma pro “digestivo”, outra para envolver um camafeu microscópico preso à argola de um piercing. “O passado (apontei para o pão), o presente (para o baseado) e. o futuro?” Uuuuu...
Acho que não vai acreditar, falou arrastado, envolvendo a peça insólita com a sedinha e erguendo o polegar esquerdo enfiado até a metade da laranja cuja casca rompeu por cima, sem ferir os gomos. Imagina o que se pode esconder entre estas suculências cítricas, como se cravasse na rocha...e dissolvesse, assim...
Eu perdi a seqüência dos movimentos ao desviar o olhar para o trote nada abstrato das ancas e peitos de Luciana que se aproximava explodindo em sol, transpiração banhada e aromas de cânfora, rangidos de calçados aquáticos e mais a volúpia animada pela convicção de trepar comigo, depois do almoço, como gostava. Era a hora do nosso itinerário pelos recantos preguiçosos do campus pós-prandial, entre laboratórios de Física, abandonados- “Bom, eu já curto endorfinas e coisas parecidas, assim, viagem de pele, sem maldade. O que rola com os de ervas, to trocando por serotonina e toda dopamina da minha lata mesmo, ô caras, sai dessa!”.
“Aceite esta laranja aqui, Luciana, vem, a gente caminha pelo fumódromo e então vai me contando como curte o cara, sem maldade...” Afastaram-se, e eu fiquei vendo quase mudo como uma lentificava a outra, enquanto se dissolvia o enigma da fruta, com um camafeu preso ao piercing metido pelas estranhas. Piercing de língua. A propósito, a Roxane pesquisava línguas nativas de tribos não aculturadas. A tarde passou. Manhã seguinte, depois do intervalo, a notícia corre: morreu de congestão! Comeu carne e foi pra piscina, já era, a gostosona...Uma tragédia, coisa horrível de ver, enrolou a língua, ficou roxa roxa, ta estendida no lava-pé esperando a enfermaria, mas já foi, todo mundo acha, choradeira, que morte estúpida, coisa besta...as amigas querendo nem ver, a fruta no chão... O frio na espinha veio com minha manobra bem sucedida que, num vacilo dos para-médicos, logrou retirar-lhe o piercing da língua e, mais tarde, arremessá-lo ao lago central do fumódromo, na ala sul. Não me perguntem a razão. É muito cedo ainda. Um impulso... de protegê-la, talvez. Até hoje não sei. Nas semanas seguintes, quando a observava de longe, sentada, catatônica, fitando a pouca profundidade do laguinho, na ala sul-oposta à saída do bandejão, ficava sem pensar. Ela, sem textos nem pretexto; sem pão nem laranja. Parecia encantada. E estava.
E eu estaria assim, até agora, se um varredor que me espiava enquanto eu olhava Roxani espiando o lago, se ele não tivesse comentado que ela deu em cima do Jonas, naquela semana em que o funcionário achara uma jóia no laguinho. Devia de ser valorosa, pois se a branquela do lago num tava maluquinha, querendo até pagar o menino!? E o cara, perguntei, ué, pois num sumiu do laboratório, daqui, do mundão? “De primero ele queria avaliar direitinho a coisa, depois voltou pra cá numa sengraceza, falando que devolvia, mas comia ela antes, a moça. Pegaram os dois nuínho na Física, ela enrolava ele com fibra ótica, que ele tava todo marcado. Pois num sumiu objeto... prisma, os avental, umas chave também! E ele também, ué, e ela fica aí olhando pro nada dele”.
Pois agora digo eu- não é que, no dia da laranja estuprada pelo dedão dela enfiado, o normal não teria sido eu ter arrastado a gostosona da Educação Física para o laboratório de Física e , ao modo de sempre, esquadrinhá-la com filetes de fibra ótica! E depois caminharmos, nus sob os jalecos, pelas espirais do Observatório a Olho Nu (às vezes, nem dava tempo de chegar a Lua e outros astros que poderíamos contemplar, luze e lume agora mesmo, Luciana, fosforesce por baixo do tecido branco e arreganha luz no meio do meio da tarde ociosa do campus pisoteando os chapados, as chapadas e as obscuridades todas, chupa agora Luciana, chupa enquanto eu peno as chaves pra despistar esses delitos, chupa a obscuridade de todo conhecer!). Nunca ninguém mais achou o prisma.
Mas...se não acharam nunca mais também o Jonas, quem era eu pra chegar na moça, encantada, e perguntar. Perguntar de quê? Ousaria descobrir como teria reproduzido a minha delirança toda com quem luzia, enquanto ela se enterrava nos próprios gomos a fundo, sem anjo-da-guarda (Ó!) e, agora, tadinha...sem um camafeu?
Uuuuu...

"Baiacu Meu"_ Conto breve

“Baiacu meu” ·Por Marco Antônio de Araújo Bueno
Digo que é meu porque, enquanto tema, quem tem Baiacu tem medo, e temo que já tenham visto o baita Baiacu do João Ubaldo escancarado na Internet. Muita coisa a respeito do peixe por lá: tem o Verde, o da Amazônia, tudo descrito, classificado e com os nomes oficiais. O meu é bizarro. É aquele que tem cara de diabo com dois chifrezinhos e tudo.
Meio quadrado e acinzentado, tem uma nadadeira pífia, curtinha demais, o que o torna vulnerável demais à correnteza, à força das águas agitadas. Se tal condição o favorece, se é coisa de sobrevivência, já é assunto de biólogo. Se lhe crava um certo “devir”, se é um capricho desleixado da natureza, já vira coisa da minha praia aqui. É certo também que possui os quatro dentinhos afiados do Baiacu do grande escritor, por isto o chamei (não ao Ubaldo...) de baita Baiacu, bem entendido! Pois bem, quatro serrilhas, ávidas para corroer cabos, redes de pescaria e até anzóis. Não obstante, bem entendido, o meu bizarro animal, eu o denomino Baiacu-estorvo. E vamos deixar de lado os Chicos, o poeta e o rio, que o escrotinho aqui estorva em água salgada, oceânica mesmo. Razão singela: jogou a tarrafa, pegou Baiacú bojudo, cinzento, dois olhões esbugalhados...pode desistir da pescaria. Resta o espetáculo patético de vê-lo inflando-se todo e expondo uma manta de cílios molengas à guisa de espinhos assustadores Seriam mesmo? Haveria veneno neles ou, onde o veneno espreita?
Bem, embora se alimente de algas, crustáceos e demais frugalidades marinhas, é certa a ocorrência de muitos dejetos e dejetos pelas quebradas por onde balanga seu estúpido rabicó, digamos...em vão. Pois, desengonçado, desproporcional e desnorteado, vive à mercê da vontade aleatória das águas. Quando termina na areia, nem por isso morre; tem uma sobrevida e tanto no seco. Fica se inchando, ridículo, frente à ameaça de uma pisadela a esmo, que nem quando bem aplicada o fará sucumbir de vez. Escolhi meu Baiacu pateta bem antes de trombar com o olhaço do João, e sei dessas coisas pelo Fabrício, o piscicultor iletrado que teimou em não vender seu peixe: - Só estrova, num assusta nem minino porque já feio, mas feio feito o diabo, nem carecia se estufar, o besta. E isso aqui tudo ó, pode por a mão...é espinho? Escovinha de dente, tem veneno nada, num espanta, só estrova. - Mas, Fabrício, nenhum bicho se defende em vão, quer dizer, fica fazendo coisa que não dê certo pra ele se manter. Pode não assustar gente, mas, sei lá, deve ter função no ecossistema dele, pra pássaros que vêm bicar na areia...
- Essas miudeza de mei ambiente eu num digo nada, vá lá, tem sina pra tudo, bem entendido. O que me inrrita é que o bicho se acha... - Como? Se acha o quê? - Um ouriço, tem base? Só que espinho de ouriço dá febre. Esse aqui nem se pisá nele, nem morre. Que nem piranha, só que num assusta nem minino. - Dá pra comer?
- Nada, num presta. Aproveita nada dele. Num tem serventia. - Comparado com... - Ô, com Pirarucu, que aproveita até a cabeça pra fazer pirão. De água doce, bem entendido! Se salgá vira bacalhau de baiano...Deste tamanho, o bicho! Vivente sozinho num dá conta de carregá. Pra pegá, lanceta o bichão quando sobe. - Bom, não vou levar mesmo. Aquário de água salgada é um trabalhão. Tinha achado ele meio exótico, bem monstrinho... - É, mas nem pra monstrengo o mostrengo serve. Leva o Palhaço! Péra aí, alô! Não senhor...sim senhor, não, não senhor, não to interessado. Não senhor, to ocupado...não quero, não, obrigado e vô desligá essa merda agora! - Telemarqueteiro, cara? - Baiacu de telefone fixo! Oferece tudo, até túmulo. Túmulo. E até tu, mula da psicanálise, desmontador compulsivo de peixes-palavra, cada idéia! Tu, que “se acha”, a ponto de pretender dar conta, sozinho, do teu baiacu literário, justo agora tem que te ocorrer a infâmia! A infame anedota, agora...”aquela” do homem que procura uma podóloga e ao escutar desta que ele tem olho-de-peixe esbraveja: “E a senhora tem cara de piranha!” Ora, nunca tive pena alguma de telemarqueteiros, ao contrário, supunha neles alguma vocação atávica ao estorvo, e os estorvava, com requintes...cada idéia! Empatava-lhes o tempo que me surrupiavam com requintes, com técnica. Fingia estar ditando textos a alguém, pedia-lhes “um minutinho”, “aguarde um instante, por obséquio”, e sapecava-lhes trechos do mais barroco “lacanês” (“... a palavra é a presença da ausência da coisa”), “um minutinho...” Ou então, as “Torturas Suplementares”, caudalosas, d “Os 120 Dias de Sodoma”, do Marquês. Retribuía a fealdade existencial dos telebaiacus com os “atrativos sexuais da fealdade”, escorado na Simone do Sartre e, quer saber, até que me achava generoso demais. Imaginava-os meio sadomasoquistas trancafiados em meio/ambientes com um PC e telefone, monitorados por vídeo e áudio, engolindo dejetos e dejetos verbais, e vendendo o peixe dos outros. Confinados nas “baias” (assim as batizaram), com cara de palhaço e, ao fim do dia, com toda força de trabalho deles à deriva, o que foi feito de suas almas? Baia “cumeu”, diria Fabrício, pouco afeito ao “Homo Fabris”; e que não vendia o próprio peixe. Mas eu, não. Generosidade - sinalizo aos baiacus como um farol. Mas, convenhamos, escrever um diário deste farol, seria luxúria. Ainda que pífia, se comparada a dos libertinos de Sade...

2.12.06

Conto: "Transcurso de Vida" (inédito)

“Transcurso de Vida”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Ninguém aqui pense que é fácil contar o que se deu com o patureba nesta parte do sudeste. Porque também no nordeste de Minas, no sul da Bahia e mesmo dentro dos lares dele, pouco se sabe do que lhe ia pela cabeça. Eu palpito aqui e ali, já que sou escrevente de relatório pra alto escalão, diretoria, gerências; inda assim, mudo o que conto toda vez que somo palpites, acolho as divergências e recheio a argamassa do contado. Dou fé e passo adiante, peneirando muito fino tudo que tem de exagero quando um depoente já vai alto de água forte. É assunto delicado por demais, mexe com o brio de muita mulher correta e pode arranhar a sina de muita criança de origem incerta. Não tem preto no branco no caso dele, não tem registro escrito pra confiar, pra ser oficial. Quem quer remexer a alma de um homem boa praça, cumpridor de pendências com filhos e mães? E trabalhador muito competente em montagem industrial! Muito menos eu, que não conto dele por contar, mas para proteger a honra dele, apesar dos apesares. O principal, que era um peão de trecho e constituía lares. Que joguem a primeira pedra num peão de trecho sempre alegre e muito atencioso, carinhoso de verdade com filho daqui e dali, não importava a geografia nem quem pariu quem. A religião mesmo era o trabalho e, pra trabalhar sossegado tinha uma só condição: fim da jornada, carecia voltar pra casa direitinho, com mulher certa, filhos e domicílio certo. Disso dou fé.
Disse que não conto por contar. Conto por causa do ilícito maior que o patureba fez, sem querer, que não tinha índole, ou querendo, meio distraído; pudera, tanto cachorro diferente pra dar resto, tanto menino birrento, mulher apegada, caixa de correio, presentinho pra cima e pra baixo e catuaba que dispensava... não tem soldador que remende uns mal feitos, mas fora do trabalho, isso é certo, que eu mesmo nunca trombei com ocorrência oficial dele. Confusão da grande, preguiça de pensar diferente com gente desigual. Não estou pra julgar nem pra intimar concidadão fora do operacional, na alma da noite da vida que leva, lá no aconchego dos seus, no caso dele, dos muitos dele. Natural que vivesse apurado, mas não justifica o ilícito que me da razão de contar e de contar direito. Só isso pra retificar, que todo o resto muda. Muda de juiz pra juiz e de comarca pra comarca. Até o que conto muda e segue mudando pra fazer jus, e toda essa alteração, mesmo dificultosa que é, mesmo assim não me distrai.
Pelo começo é fácil entender porque, de primeiro, eu coincidia com o cronograma dele, período por período, obra por obra, empreitada de quem fosse, lá estava o patureba alegre, trabalhando direitinho. Despedindo de todo mundo no final do trabalho, tomado banho, batendo pra casa dele. Isso durou exatamente quatro trechos e eu acompanhei junto porque calhou de ser. Trecho seguinte, lá chegava escanhoado, fala curta e eu que ia já explicando que era o patureba porque nasceu em Patos de Minas. Mas onde pendurava o boné, já que não freqüentava o rancho de costume nem se amuntuava que nem cigano catinguento, nem batia água de faca pra santo nenhum, bem, aí eu já calava. Fazia o meu trabalho e ele o dele. Nem mais nada. E “até mais vê” noutro trecho. O senhor me pergunta se eu sabia do domicílio dele? Sabia só que era certo, falar o quê!
Mas um dia eu cheguei nele. Os dois, torcedores do América, eu sempre fazendo relatório e ele arremate de platibanda, coisa e tal, umas intimidades dele me contar o principal: chegava na cidade, aprumava documento e ferramenta, dava telefonema e...pra praça. Zanzava sossegado, alegrão, sem ficar se amoitando em sombra, sem carteado nem conversa mole. Um olho na camaradagem e o outro no principal. E o principal dele era achar uma esposa-e-mãe. Não tivesse filho, ele fazia, não importava.
Nem confidência pedia nem o tom da voz baixava: - “Se tenho trabalho em altura, eu num prego meu mosquetão numa ponta segura pra poder sair soldando, garantido na linha-de-vida? Então, a mesma coisa quando desço pro canteiro, tiro as proteção e volto pra minha casa”. Eu brincava, às vezes (devia era de fazer mais comentário...):- “Vai, vai um dia lá você e crava o talabarte numa bela duma eletrocalha, cheia de fio com fio; vai confiando na linha-de-vida sem mais prudência, filho com filha de outra... essas coisas s’encostando, sem estrutura nem nada e patureba vira carvão, pras esposa-mãe soprar no vento!” Mas ele só remendava - “Chô sombração! É meu jeito assim, muleta pra quem sabe andar e no mais eu sou confiante, pode escrevê com letrinha e letrona. Ué seu Esfero, nóis é ou num é América de Minas?”. Esfero era minha alcunha, por causa das canetas esferográficas no bolso. E eu era de Minas sim, mas não constituía família em cada trecho de obra que eu assumo. Não sofro risco de um curto, e no mais já é de foro íntimo, como eu faço ou não faço.
Essas intimidades de falar pegamos mesmo no fim do segundo trecho que calhou, cronograma e tudo, hora-extra com adicional noturno, que é quando a alma do peão precisa falar, falar do aconchego que perdia e, outros, do aconchego que pensava que tinha, linha-de-vida perdida na neblina que nos envolvia em conversa miúda de madrugada. Eu, de tanto plantão além da conta, acostumei, mas o patureba sofria de dar dó; era emotivo e carecia relatar até os detalhes de outras obras idas. Eu sempre presto atenção, eu brinco: “eu preciso ser preciso!”. Eu ia vendo que, no caso dele, que não atinava com essas filosofias, era ele que precisava que alguém, fora do trabalho, precisasse dele chegando em casa, comendo quentinho, dando resto pra cachorro, namorando de ranger a cama na orelha de filho, fosse dele ou não, mas tudo num domicílio certo a cada trecho. Eu tinha um certo respeito por isso. Uma vez, no Machado de Assis, eu tinha lido sobre um homem que tinha mais de um lugar onde pendurar o seu chapéu. Não lembro como era o conto, mas essa condição lhe era importante, talvez a principal. As coisas do patureba começavam a girar na minha cabeça e eu quase perdia um pouco de nitidez no meu trabalho. Às vezes me distraía até; telefonema da Bahia, filha de dezesseis já dando neto, filho do norte do Paraná querendo visitar e ele muito carinhoso mesmo. Tinha brigas de marido e mulher, mas não dava pra saber de onde era, de que quadrante, de que região ou época.
Apesar de eu ter estudo, de ter boa caligrafia, de ser muito preciso e definido no que relato, sempre me atrapalho com os nomes dos graus de parentesco.Concunhado, genro, nora, prima de terceiro grau e relações maiores, mais distantes de família, de famílias grandes, tudo isso sempre foi pra mim uma idéia vaga. Filho único, morei com meu pai, mestre de obras, quando minha mãe desapareceu com outro homem, mas...dentro da “própria” família, dizia meu pai, sem muito mais o que dizer. Ele tinha atenção só para o meu estudo, que ele não teve. Era quieto por trás da prancheta, sempre. Sempre que se falava de família vinha um constrangimento; até da minha própria, com mulher e quatro filhas no domicílio de sempre. Vai daí que eu me confundia com os apuros familiares do patureba, na hora de calcular benefícios, preencher os formulários. Na confusão, deixava passar dúvidas em cima de dúvidas, pra não deixar relatórios duvidosos.
Quando minha caçula engravidou, justo ela, a que nasceu sem muita nitidez para mim que já tinha fechado uma família de três filhos, justo quando eu ia ser pai de um filho homem, único neto de meu pai, tive que me afastar temporariamente. E perdi de vista o patureba. Mas foi a divina providência, porque ele, então estabelecido no sudeste de São Paulo, deu pra beber e foi se afastando de algumas pessoas principais de sua própria família. Recebi telefonemas insistentes, a cobrar, lá para minha cidade. Desligava na cara. Não podia ser conivente com o rumo que estava dando à vida dele, bebendo de não voltar pra casa, causando acidentes com solda, engravidando mulheres muito jovens.
No antepenúltimo depoimento que prestei nesta comarca, na presença daquele juiz já falecido, relatei com detalhes os motivos de força maior que me fizeram faltar ao trabalho por alguns dias.
Inclusive no dia em que se deu o acidente com o patureba, aquela desatenção que fez com que ele ignorasse, segundo os relatórios, uma alteração na estrutura onde alguém atrelou o mosquetão dele. A descarga elétrica liberada pela bandeja da eletrocalha tinha voltagem suficiente para levar a óbito quase quatro homens!
Como? Não senhor, não tenho nenhuma relação de parentesco nesta parte do sudeste. Devo acrescentar também que me confundo um pouco com os pontos cardeais, desde que me internaram nesta instituição.
Sim senhor, estou em plena posse de minhas faculdades.

"Navalha na Tarde"_Conto curto (publicação)

“Navalha na Tarde”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

...a mãe virou-se para pegar talco e pomada sobre a cama. Inquieto, ele revirou-se na cômoda e tchof, sem cuspe – quedou-se encestado na cestinha de lixo ao lado, de ponta cabeça. Queda rápida, sem conseqüências; amortecida pelas texturas macias de algodão e outras brancuras do interior da cesta. Nem resvalou o aro. E, como numa retomada da epifania do parto, o pai o resgatou pinçando-lhes os pés segundos depois, triunfante e exclamando em júbilo - É lindo até de ponta cabeça!
Fim de ano, fim de semana, fim de tarde; tarde sem fim. Com o tempo, habituou-se a tratar esses fragmentos inteiros de lembrança, que, da mesma forma como irrompiam do nada, ao nada se recolhiam cheios de nostalgia nebulosa, acostumou-se a denominá-los de vitrais do tédio. Talvez para reaver deles a poética do que se foi, em meio ao tédio do que, apenas, é. Se a vida fosse um quebra-cabeça...e ficou por ali, coçando suas inconclusões.
O próprio Domingo estava inconcluso: seu time quase na ponta do campeonato (se virassem a tabela de ponta cabeça...), um abafamento viscoso estourando barômetros, prenunciando um temporal que não despencava nunca; perspectivas embaçadas pra semana e...a barba por fazer – um estilhaço no vitral!
A barba e o Domingo; os domingos e a barba, a que fora crescendo como picadas no cerrado em sentido aleatório, sem padrão definido pela face, resultado de investida precoce com a lâmina do pai contra sua face de onze anos. Travessura de moleque em férias na praia, quando objetos pessoais perdem privacidade e excitam a imaginação. Especialmente, os perigosos, ainda que apenas para o sentido dos fios da barba de um homem. Toda manhã, uma indagação sobre este sentido, neste sentido...
O Domingo e suas animosidades à flor da pele, aquela irritabilidade posta como a mesa posta e predisposta a todo tipo de encontro - intimidade que ficou à sombra esgueirando-se pelos cantos da agenda blindada ao longo da semana, agora reclama uma forma qualquer de expressão explosiva para romper o dique e azedar a modulação da voz, a truculência dos gestos menores. O monstro oculto pela rotina protocolar do não-dito: - Me passa o azeite e o controle remoto que esqueceu de trazer pra mesa. E, pra seu “controle”, eu prefiro adoçante no meu suco e não na salada. – Nossa, não pode desgrudar da televisão nem pra almoçar? Olhe suas olheiras, que horrível. – Estão na moda, sabia? É, as velhas e boas olheiras do Sérgio Cabral pai, ganharam as eleições no Rio; voltaram por procuração genética, pra lançar um olhar mais “doce” para o morro...Sabia que quarenta por cento de mediação de conflitos é puro senso de humor? O que virou o FHC depois que operou as olheiras? – Ta acabando já o jogo, pelo jeito do seu humor, querido? Nunca vi almoçar tão tarde, meu estômago me pergunta se eu acho que ele é idiota pra ficar esticando essa enganação com queijinho e azeite. – Pois nem começou, conforme você nem viu; deixa a louça que depois eu lavo. Vou esperar o ciclone lá fora. – Que ciclone? – O extratropical com chuva de granizo, no mínimo, pra aliviar minha neurose barométrica. E arrastou a espreguiçadeira para perto das plantas.
Depois eu lavo tudo, o ciclone lava o rebaixamento do time e o vento estilhaça o vitral de tédio. Agora é só realizar o nada. Mas ela esticou as pernas na muretinha, e as observava longas e prateadas, como prateada era a navalha que deslizava por elas. Passa as mãos pelo rosto, irritado. Reclinado, ela decide barbeá-lo.
Trovões anunciam alguma trégua, o vento mais forte os acaricia, silentes.
Debruçada sobre o pescoço dele, entregue, enquanto a navalha, precisa, corrige o relevo da pele dos onze anos, percebe o olhar agudo, imperturbável e o ângulo harmonioso daquelas mandíbulas. Nebulosidades espraiam-se lentas por trás daquele rosto feminino, oval; tão oval. – Você é a mulher mais linda que eu já vi de ponta cabeça! Não me saia por aí de ponta cabeça, viu! – Pára, não mexe. Barbear é preciso...
- Viver não é preciso!